07/03/2016

Segunda-feira

Abaporu, Tarsila do Amaral

Hoje acordei um pouco morta. Minhas mãos estavam geladas. Meus cabelos jaziam ressecados sobre o colchão. Com muita dor fui retomando posse do meu corpo todo. Sobretudo as pernas. Como doíam as pernas. Meus pés também estavam gélidos. Ontem treinei. Treinei, treinei e treinei. Repeti mil vezes os mesmos movimentos. Até o ponto em que meu corpo, dolorido corpo, não precisou mais da ordem do cérebro para se mover. A cada golpe mais potência. A cada floreio mais contorção. O corpo, intransigente corpo, necessitava de alcançar a precisão nos seus desenhos efêmeros. Tão logo traçadas no ar, já se apagavam as figuras. Talvez por isso o corpo as repetisse tantas e tantas e tantas vezes.
Que dor. As coxas, as panturrilhas, os oblíquos. E a nuca. Na dor eu percebia a existência do universo interior desse corpo tão meu. Tão pouco meu. Abria e fechava as mãos, mexia os dedos dos pés, massageava o pescoço e a cintura. Fui despertando, renascendo na dor. Que dor! As mãos e os pés continuavam frios. Mortos-vivos. Saí da cama, me encostei na porta branca do armário e me olhei no grande espelho. Fitei meu corpo dolorido por dentro. A pele negra, os cabelos negros, os olhos negros. Pernas grandes, um pouco arqueadas. Quadril largo, um pouco de culote. Barriga debaixo da blusinha preta do pijama, um pouco de cintura aparecendo. Doloridos oblíquos. Braços roliços e mãos agressivas. Clavículas evidenciadas pela iluminação do cômodo. Do rosto eu só vi as olheiras. Pele negra, linda de longe. Imperfeita. Manchas, espinhas, cicatrizes. Partes escuras. Asperezas. Celulites e estrias. Quase nojo. Pelos negros.
Gosto do meu corpo dolorido. Do corpo e da dor. Gosto do meu corpo. Gosto dele só para mim. Será que outrém poderia apreciá-lo como eu? Sem julgamento ou estranhamento. Dividir meu corpo é uma dor. Não gosto dessa dor, gosto daquela outra. Dos movimentos repetidos dez, vinte, cinquenta vezes. Dores musculares porque existem músculos. Dores articulares porque há articulações. Parece até que só a dor desperta a consciência.

Começou a segunda-feira.




Des bisous?